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Foto do escritorVivian Vi

O momento que estamos vivendo é atípico, e não permite otimismo no curto prazo




VIDI – Considerando sua trajetória, com tantos anos de serviços prestados ao Brasil numa das pastas mais sensíveis para os países bem estruturados e que prezam por sua boa imagem internacional, que momento o senhor acompanhou e destaca como estratégico para o país?

Francisco Rezek – O ano de 1990 desencadeou mudanças importantes no cenário global, e no Brasil em particular. Lá fora assistimos ao colapso do socialismo real e à restauração da nacionalidade como fundamento do Estado soberano. Aqui, deixamos de ser um país fechado ao exterior e teve início uma era de intensa comunicação e intercâmbio em todas as vertentes. A diplomacia brasileira da época celebrou a nova tendência global e executou com rigor a diretriz política da abertura. Poucos momentos na história foram tão significativos da evolução da sociedade humana quanto aquele romper dos anos 90.


VIDI – O senhor participou do julgamento do caso Gabcíkovo- -Nagymaros (Hungria vs. Eslováquia), primeira atuação contenciosa da Corte Internacional de Justiça em esfera ambiental, referente ao conflito entre, de um lado, o princípio da precaução no direito ambiental e, de outro, o princípio pacta sunt servanda aplicado ao tratado vigente entre os dois países, que previa a instalação de um sistema de eclusas e barragens sobre o rio Danúbio. Qual a sua opinião sobre a decisão da Corte no caso?


FR – Na parte decisória de seu acórdão a Corte procurou ser prática e, mais que definir razões e culpas, buscou encaminhar o conflito entre as duas nações da Europa central de modo minimamente satisfatório para ambas. No que dependesse de mim, a Hungria e seu argumento preservativo do meio ambiente teriam obtido maior satisfação. A maioria entendeu, de fato, que era importante valorizar acima de tudo o princípio pacta sunt servanda, a sacralidade do tratado bilateral, ainda que com algum sacrifício dos valores ambientais defendidos pela Hungria.


VIDI – O senhor participou do julgamento de outros casos ambientais durante o seu mandato de Juiz da Corte Internacional de Justiça? Quais foram as decisões da Corte?


FR – Não. Até o final de meu mandato, em fevereiro de 2006, a Corte não voltou a enfrentar casos de algum modo relacionados com a temática ambiental. Mas logo em seguida veio à sua barra o caso chamado das “Papeleras”, opondo a Argentina ao Uruguai, depois que este último autorizou a construção de fábricas de celulose no estuário do Prata. É sugestivo que a Argentina tenha descartado a alternativa de resolver o conflito no âmbito do Mercosul, e tenha preferido buscar o foro judiciário global da Corte da Haia. Pareceu-lhe, certamente, que a Corte acolheria de melhor grado seu argumento de cautela ambiental que o foro preferencialmente econômico do Mercosul. O acórdão da Haia em 2010 mostrou que a Argentina tinha razão. No mérito, e também, instrumentalmente, na escolha do foro.


VIDI – Na sua opinião, por que a Corte Internacional de Justiça tem uma atuação contenciosa em esfera ambiental reduzida a poucos casos? O senhor vislumbra uma mudança nessa tendência?


FR – Parece-me que a razão principal é o fato de se encontrar, para dissídios dessa natureza, uma solução política, diplomática, menos aparatosa e menos dispendiosa que a solução judiciária. É bom que assim seja, e que a Corte só tenha de resolver em foro contencioso aquilo que terá sido impossível resolver com entendimento direto e diplomacia competente, numa época em que todos prestigiam, ou pelo menos querem parecer prestigiar, a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável.


VIDI – Com sua experiência como Ministro de Estado das Relações Exteriores como o senhor enxerga o posicionamento do país no cenário internacional hoje?


FR – É um momento de crise, produto da visão obtusa do governo que temos, e do eclipse temporário do Itamaraty. Comprometeu-se, nos últimos dois anos, uma imagem de racionalidade e lucidez que o Brasil preservara durante tantos anos, mesmo na alternância entre a direita e esquerda no exercício do poder. Mais, entretanto, que o desvario, o que manchou nossa imagem nesse período foi a subserviência a um governante estrangeiro inconsequente. Mas isto, para o bem de todos, vai acabar dentro de algumas semanas.


VIDI – Como chanceler brasileiro o senhor participou de reuniões preparatórias de conferências das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento em 1991 e 1992, portanto, às vésperas da Rio 92. Vendo o posicionamento do Brasil à época em comparação com o quadro atual, na sua visão, como podemos resgatar o protagonismo brasileiro na agenda internacional do meio ambiente?


FR – Cinco anos depois da Rio 92, o cenário geral retrata va já alguma decepção com os desdobramentos da Conferência e com as perspectivas da Agenda XXI. Mas houve episódios importantes e positivos, como os acordos de Kyoto. Quanto ao resgate do protagonismo brasileiro nesse domínio, creio que ele não virá tão cedo.


VIDI – A eleição de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos deve contribuir para um reposicionamento brasileiro em relação ao cumprimento dos compromissos brasileiros junto ao Acordo de Paris? Qual o legado ou o passivo da era Trump na diplomacia comercial? Como ficará o Brasil nesse cenário ambiental e econômico?


FR – De Donald Trump não ficará nada, exceto uma patética lembrança. Para o Brasil, como para os Estados Unidos e para o mundo, a vitória do democrata


Joe Biden foi um grande acontecimento. E todas as perspectivas, não apenas no domínio ambiental, passam a ser melhores. Até porque a vassalagem do governo brasileiro à administração Trump não nos rendeu qualquer benefício, sequer no terreno estritamente comercial.


VIDI – Estamos em período pós- -eleições municipais no país, iniciando uma nova legislatura. Ban Ki-Moon, então Secretário-Geral da ONU, no lançamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em 2015, afirmou que “os desafios da agenda ambiental serão vencidos ou perdidos nas cidades”. Como o senhor avalia o papel dos governos subnacionais no cumprimento da agenda climática?

FR – Foi profética a afirmação de Ban Ki-Moon. A descentralização das ideias, e dos debates, e dos projetos, e das escolhas, é algo que propende a crescer mesmo nos regimes unitários, mais ainda nas federações. É irônico que a vocação desagregadora do atual presidente do Brasil tenha esse efeito colateral altamente positivo: o de fomentar rebeldias e favorecer a emergência de lideranças tanto no plano dos estados federados quanto, até mesmo, no de bom número de municipalidades no Brasil contemporâneo.


VIDI – Nesse sentido, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, estabelecidos pela ONU, trazem uma agenda ambiciosa, que deve ser buscada pelos países até 2030. Como o senhor analisa o posicionamento brasileiro para o cumprimento dessa agenda que envolve questões como redução da pobreza, geração de emprego, igualdade de gênero, prevenção das mudanças climáticas, produção e consumo responsáveis?


FR – Prefiro dizer apenas que este não é um momento promissor. Mas tenho a certeza de que, até 2030, o Brasil terá podido honrar os compromissos da agenda das Nações Unidas.


VIDI – Os desafios da agenda climática envolvem ações de adaptação e de mitigação climática. Como o Brasil pode avançar nessa agenda, em especial em relação aos dados de desmatamento da Amazônia?


FR – Insisto em que o momento que estamos vivendo é atípico, e não permite otimismo no curto prazo. Cada palavra que pronunciam alguns dentre nossos atuais governantes parece ser a outorga de uma carta branca a essa organização criminosa heterogênea que assola o norte do país, seja no garimpo, no desmatamento, no contrabando, na corrupção e contaminação das comunidades indígenas, na sonegação crônica, no atentado permanente à ordem jurídica republicana.


VIDI – Na esfera econômica, investidores e empresas têm assumido a agenda ESG – traduzida para o português com foco nos aspectos ambiental, social e de governança como referência de atuação hoje. Como o senhor enxerga o futuro das empresas brasileiras nesse cenário?


FR – Pelo meado da primeira década deste século, nossos observadores mais atentos e interessados, lá fora, diziam que o governo brasileiro havia mergulhado numa crise brutal, mas que o Brasil não estava em crise. Os agentes econômicos, o setor privado, a imprensa, a academia, a justiça, tudo isso representava uma fortaleza infinitamente maior que o governo, e respondia pela vitalidade do país em hora difícil para os governantes, e só para eles.


Sempre acreditei que esses valores da sociedade civil brasileira, que o empresariado propende a representar com fidelidade crescente, são a nossa âncora, aquela que nos imuniza contra os efeitos da falência da classe política. Não tenho, hoje, razão nenhuma para duvidar disso.


VIDI – Estamos num momento dramático com uma pandemia colossal a ser combatida. Alguns países dando sinais de fragilidade institucional, ideológica, o que torna mais difícil esse enfrentamento, com desafios pela frente que o século XX não conheceu. Quais os impactos desse momento para o multilateralismo, tão arduamente construído após as grandes guerras do século XX?


FR – No cenário geral da crise sanitária as nações identificam melhor a qualidade de seus governantes, o talento de alguns, a inoperância de outros, a insensatez de outros tantos. A pandemia será, ao fim e ao cabo, um duro processo de aprendizado do multilateralismo construtivo: de sua preservação em período tempestuoso, e de sua consolidação. Talvez a caricatura que foi a administração de Donald Trump no país que por tanto tempo liderou o Ocidente tenha sido a marca inspiradora de um novo tempo, de uma nova realidade, onde ninguém mais duvidará de que fora do multilateralismo não há salvação.


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